sábado, 2 de agosto de 2008


"Pois a desconsideração ou o esquecimento do nariz na história da filosofia merecem um estudo por si sós! Seria inútil procurar reflexões, mesmo que modestas, ou análises dignas desse nome concernentes aos cheiros, aos perfumes, aos aromas nas obras de filosofia dedicadas ao julgamento do paladar, à estética, à análise dos sentimentos, emoções ou percepções artísticas. Tudo para o olho! E uma complacência igualmente para com a orelha, pois esses dois órgãos colocam o mundo à distância, ao contrário do paladar, do tato e do olfato, que supõem a carne e o corpo em sua totalidade.

A imagem e o som dispõem de um status intelectual negado aos sabores, odores e percepções táteis: a boca, o nariz e a pele, não apenas a polpa dos dedos, já tão restritiva, supõem as mucosas e as secreções. Mas, sobretudo, esses três sentidos atestam a animalidade que subsiste no homem: tocar, fungar, farejar, mastigar, engolir, deglutir são operações que invocam a digestão e a defecação, a submissão às necessidades naturais. O nariz é o órgão dos animais que caçam, matam e comem."


ONFRAY, Michel. "Aristipo e 'a volúpia que instiga'". In.: Contra-história da filosofia. 1: as sabedorias antigas. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 108.



"O vovô Vicenzo era tão divertido quanto o vovô Javier, mas em outro estilo. Uma vez me contou como se salvou de um naufrágio famoso. Perguntei se ele tinha se safado porque sabia nadar. 'Não, mas que idéia. Sempre tive mais afinidade com as aves do que com os peixes. Mas a verdade é que também não sei voar.' Sua gargalhada florentina ressoava no pátio como um carrilhão. 'E então como foi que você se salvou?' 'Muito simples: perdi o barco em Gênova. Cheguei ao porto meia hora depois daquela partida asquerosamente pontual. Tentei arranjar uma lancha para me levar até o navio (ainda estava à vista). Por sorte fracassei no propósito. Quando soube, dez dias depois, que o buque afundara em pleno oceano, não me veio uma idéia menos egoísta do que festejar com um garrafão de Chianti. Já sei que está errado, que eu devia ter pensado nos outros; hoje não faria isso de novo, mas naquela época eu era muito jovem e ainda não aprendera a ser hipócrita.' E aqui outra gargalhada."


BENEDETTI, Mario. A borra do café. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 19-20.