quinta-feira, 31 de janeiro de 2019


Hoje fui ao cinema sem você. Foi como ter outra vez treze anos. Com essa idade comecei a ir sozinho ao cinema. Um ritual: conferia os títulos e os horários, ligava para o cinema para confirmar, que na cidade onde eu morava nem sempre o jornal tinha razão, recortava a pequena reprodução em preto e branco do cartaz do filme que queria assistir e guardava numa gaveta. A minha gaveta, com chave. Nessa época as salas exibiam filmes, e isso as justificava. Na minha adolescência, na cidade onde eu morava, já não haviam mais shows ou teatro na sala de cinema. Na cidade onde eu vivia não tinha pipoca nem refrigerante pra vender na sala de cinema. Quem ia queria ver um filme, exclusivamente isso. Não tinha um shopping como pretexto. E nem todo mundo ia. A maioria esperava o fim de semana, porque ir ao cinema podia ser um programa de família ou, às vezes, a única intimidade possível para um casal. Se eu fosse um frequentador de fim de semana, nunca iria sem você. Todas as idas ao cinema eram especiais, e ia três, quatro vezes por semana. Gostava de brincar sozinho, e aos 13 minha brincadeira predileta era ir o cinema. Uma brincadeira séria, um prazer quase secreto. Por que na sala de cinema, dependendo do dia, tinham só mais duas ou três pessoas, anônimas. Nós que vamos sempre ao cinema não gostamos de sentar próximos uns dos outros ou de nos conhecermos. Os minutos antes são de preparação, esvaziamento, meditação. E a proximidade atrapalha a imersão. Tentamos ser invisíveis, pra podermos ser outra coisa. A imersão é a possibilidade de duas a três horas sendo outro, sendo outra, em outro lugar, em outra vida. Fui ao cinema sem você hoje. E isso também tornou possível o modesto prazer do excedente, de sair depois dos créditos e seguir sendo outro, sendo outra, durante algum tempo, no cenário da vida de todos os dias. Algumas vezes tivemos juntos esse prazer do excedente (ou você só respeitava o meu silêncio?), mas sempre existe o risco de eu ou você sentirmos a necessidade de dizer alguma coisa na saída. E as palavras espantam o personagem e afugentam o excedente. Fui ao cinema hoje sem você. Foi como ter treze anos de novo. E ter de novo quatorze, e quinze, e visitar cada um e todos os anos da minha vida, porque nunca deixei de ir ao cinema. E hoje eu fui sem você, como tantas vezes antes, como tantas vezes depois. Hoje só tive eu e duas ou três solidões sentadas uma distante da outra na sala de cinema. E lá, assistindo os  trailers, tive certeza que continuarei levando a minha solidão e colocando sentada na poltrona enquanto estiver vivo. E enquanto houverem cinemas sem shopping, sem refrigerante e sem pipoca. Irei sozinho, irei com outros, com outras, especialmente quando te encontrar no amor sem você. Depois dos créditos finais desse longo espaço entre nós, entre os nossos personagens. Depois desse tempo de excedente indesejado que as palavras não conseguem afastar.      

domingo, 27 de janeiro de 2019




Suspenso nesse galho, fruta ou trapo
olha o abismo

é teu irmão esse espaço vazio
é teu destino essa queda

Tua zona de conforto.
Dolorida, sendo queda,
mas acolhedor o vazio,
como o silêncio.

Suspenso nesse galho como

"qualquer trapo úmido de limpar coisas, que se levam para a janela, mas se esquecem, enrodilhados, no parapeito que mancham lentamente"*



*Bernando Soares aka Fernando Pessoa - Livro do desassossego

sábado, 26 de janeiro de 2019



Nem tudo é poesia,
por sorte.

Nem tudo é antiode,
também por sorte.

A maior parte das coisas
é mediana.

Desnivelada, claro,
mas ao nosso nível
de espanto,
de ação,
de desencanto
e contemplação.

A vida entra pelos poros,
encontra mucosas pra sair.

Nada define,
de uma vez por todas,
a condição cotidiana.

E andamos às cegas pelo tempo,
convictos atravessamos espaços,
até que despertamos
para o sono de tudo que existe.










estar sozinho e não estar. dupla ausência. não encontrar-se: dentro vazio. estar nada, aberto e fechado, epidérmico, todo superfície. sem alma, cheio de espaço: 

um grande sim, para ninguém

ser ninguém; estar sozinho, estar nada e estar sim, mas para fora. preencher o sim sozinho. e oco. boneco que murcha, cai, empilha-se sobre si mesmo. estar sozinho, vazio e oco: atravessado de ar, atravessado de luz, atravessado de tempo. algo fundamental se perdeu ou nunca esteve,  algo se quebrou ou nunca foi completo. 

(o gesto suspenso flutua do sim para o não e morre em talvez)

não tem sempre nem nunca, só agora, que não tem mais. morreu tinha e descansa quem sabe, para nunca mais decidir. 
pra agora, sim, e não, e mas, e passa. 

No hay sol 
Ni media o llena luna 
Ni callecita bajo la lluvia 
Ni la noche toda por delante 
Ni las luces 
Ni la plaza 
Ni nada girando alrededor 
No todo lo aprendido: 
todo lo que olvido me contiene. 

minto: nunca sozinho: fechado e aberto a tudo: minto: todo superfície, mas oculto. 

um enorme sim para quem veio e, acidente, ficou

ser ninguém: pleno acordo, justo, simples, sorriso e aceno ao talvez, ao provisório. 
o não: atravessado de ar de luz de lua de penumbra do dia. sombra ao sol, desaforo imóvel: 

cheiro distante de alegria. não virá, mas sopra, e basta. 

minto: atravessado de tempo, sempre sobra: nunca história. o agora: falsa e única verdade que nunca esteve, porém: minto. desconfiar do sim: parece ter luz, mas só talvez. 

Así que estoy sin mi 
Conmigo en otra parte. 

e passo como se nunca estive. 
o futuro.