terça-feira, 21 de dezembro de 2010
O ano da ausência: 2010.
quinta-feira, 18 de novembro de 2010
lua depois da chuva
Ela não viu a lua depois da chuva.
Seu estado de irritação impediu meu aviso.
É muita coisa pra se ver: a lua depois da chuva, no meio do céu, brilhando e dizendo "sim, as coisas sempre recomeçam, a vida dá voltas, o mundo antes de acabar sempre começa de novo".
Fechei a janela pra não olhar sozinho aquela lua no meio do céu. Será que um dia ela vai descobrir a profundidade desse ato de amor?
quarta-feira, 17 de novembro de 2010
Pessoa
Fernando Pessoa escrevia em pé, numa mesinha redonda, no maior desconforto possível. Escrevia pra não pensar, pra calar por instantes as vozes que o alucinavam. Talvez escrevesse de olhos fechados, psicografando realmente, sem fingir que o fazia. Vejo Fernando Pessoa em pé, os braços cada vez mais longos, os cantos da boca repuxados pra baixo, escandindo, medindo, destacando as sílabas, atento a isso e ao tamanho da letra, do papel, à cor da tinta e, finalmente, quase ao fim do último verso, à idéia que lhe era berrada aos ouvidos sabe-se lá por quem.
Mais coisa velha.
Como o sol refletido no chão da despensa filtrado através do vidro da janela como uma árvore que não se vê e que está ali fora ao lado do canteiro de rosas brancas crescendo à revelia como achar que a partida é a melhor parte da viagem como olhar para o chão e ver os próprios pés andando como sentir na mão no meio da mais longa palestra uma parte muito especial de alguém muito especial como pedras empilhadas há muito tempo e o musgo da chuva entre elas como frase que pode ser entendida em dois ou três ou quatro sentidos de trás pra frente ou pro lado.
Um poema
Devo ter escrito uns dois ou três poemas em toda a minha vida. Hoje encontrei, meio por acaso, um deles. Acho que é de 1998 ou 1999.
Ainda sou um menino bem comportado
Que segura as mangas da camiseta pra colocar o casaco
Todas as retas que traço terminam num abismo à esquerda
Não gosto de aquecedores e nunca andei de avião
O número cinco me dá muita sorte
Quando falo de mim não consigo parar
até revelar um segredo gravíssimo
Quando falo do campo sempre digo “lá fora”
Meus livros me oprimem e fazem companhia
Dos discos que tenho nenhum quero ouvir
Não tenho dinheiro mas gasto sapato
Não faço a barba mas ando de ônibus
quarta-feira, 15 de setembro de 2010
Sempre vale a pena consultar o Machado.
(In.: Balas de Estalo. Obra Completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994. Crônicas publicadas originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, de 02/07/1883 a 04/01/1886)
quarta-feira, 4 de agosto de 2010
quarta-feira, 28 de julho de 2010
O 'outro' Nolan
Na foto ao lado, o sujeito de trás é autor do texto abaixo. O da frente, Christopher Nolan, é diretor de cinema (você já deve ter ouvido falar...)
Memento Mori
por Jonathan Nolan
"O que como uma bala pode desenganar!"
- Herman Melville
Sua mulher sempre costumava dizer que você chegaria atrasado a seu próprio funeral. Lembra-se disso? A piadinha dela por você ser tão lerdo -sempre atrasado, sempre esquecendo coisas, mesmo antes do incidente.
Neste momento você provavelmente se indaga se chegou atrasado ao dela.
Você esteve lá, disso pode ter certeza. É para isso que serve a foto -aquela, pregada à parede ao lado da porta. Não é usual tirar fotos em um funeral, mas alguém, seus médicos, suponho, sabiam que você não se lembraria. Eles a ampliaram bastante e a puseram bem aí, próxima à porta, de forma que você não pudesse deixar de olhá-la sempre que se levantasse para procurá-la.
O cara na foto, esse com as flores? É você. E o que você está fazendo? Está lendo a lápide, tentando descobrir de quem é o funeral em que está, da mesma forma que você a está lendo agora, tentando descobrir por que alguém pôs a foto próxima à porta. Mas por que se preocupar em ler algo de que você não lembrará?
Ela se foi, foi para sempre, e você deve estar sofrendo neste instante, ao ouvir a notícia. Acredite em mim, sei como você se sente. Você deve estar um desastre. Mas dê uns cinco minutos, talvez dez. Talvez você possa seguir por toda uma meia hora antes de esquecer. Mas você esquecerá - eu garanto. Mais alguns minutos e você se dirigirá à porta procurando-a novamente, desabando quando encontrar a foto. Quantas vezes você precisa ouvir a notícia até que alguma outra parte de seu corpo que não esse seu cérebro arrebentado comece a lembrar? Desgosto infinito, raiva infinita. Inúteis sem direção. Talvez você não possa entender o que aconteceu. Não posso dizer que entendo, também. Amnésia reversa. É isso que diz o aviso. Doença de CRS. Seu chute vale tanto quanto o meu. Talvez você não possa entender o que lhe aconteceu. Mas você se lembra do que aconteceu com ela, não? Os médicos não querem falar a respeito. Não respondem às minhas perguntas. Não acham certo que um homem em suas condições ouça essas coisas. Mas você se lembra do suficiente, não? Lembra-se do rosto dela. É por isso que estou escrevendo a você. Fútil, talvez. Não sei quantas vezes você terá que ler isso antes de me escutar. Não sei nem mesmo há quanto tempo você está trancado nesse quarto. Você também não sabe. Mas a sua vantagem em esquecer é que você se esquecerá de se assumir como uma causa perdida. Mais cedo ou mais tarde você vai querer fazer algo a respeito. E, quando o fizer, terá de confiar em mim, porque sou o único que pode ajudá-lo. Earl abre um olho depois do outro para ver uma faixa de azulejos brancos no teto, interrompida por um aviso escrito à mão colado bem sobre a sua cabeça, grande o suficiente para que ele possa lê-lo da cama. Um rádio-relógio está tocando em algum lugar. Ele lê o aviso, pisca, lê novamente e então dá uma olhada no quarto. É branco, avassaladoramente branco, desde as paredes e cortinas ao mobiliário institucional e aos lençóis. O rádio-relógio toca de cima da mesa branca sob a janela com cortinas brancas. Neste momento, Earl provavelmente percebe que está deitado sobre seu edredom branco. Ele já está usando seu roupão e chinelos.
Ele se deita e lê novamente o aviso colado ao teto. Ele diz, em maiúsculas cruas: "Este é o seu quarto. É um quarto em um hospital. É aqui que você mora, agora". Earl se levanta e olha em volta. O quarto é grande para um quarto de hospital -um linóleo vazio se estende da cama em três direções. Duas portas e uma janela. A vista também não ajuda muito -algumas árvores no centro de um gramado bem aparado que termina em uma bifurcação de asfalto com duas faixas de largura. As árvores, à exceção dos pinheiros, estão nuas -começo da primavera ou final do outono ou um ou outro.
Cada centímetro da mesa está coberto com "post-its", blocos de papel, listas bastante organizadas, manuais de referência de psicologia, fotos emolduradas. Em cima da bagunça há algumas palavras cruzadas feitas pela metade. O rádio-relógio cavalga uma pilha de jornais dobrados. Earl bate no botão "snooze" e pega um cigarro do maço colado com fita adesiva à manga de seu roupão. Ele apalpa os bolsos vazios de seu pijama à procura de fogo. Vasculha papéis sobre a mesa, olha rapidamente dentro das gavetas. Finalmente encontra uma caixa de fósforos colada à parede ao lado da janela. Outro aviso está colado logo acima da caixa de fósforos. Ele diz, em letras amarelas berrantes: "Cigarro? Procure algum aceso antes, estúpido". Earl ri do aviso, acende o cigarro e dá uma longa tragada. Colada à janela diante dele está outra folha de fichário intitulada "Seu Horário". O horário planeja as horas, cada hora, em blocos: das 22h às 8h diz "volte a dormir". Earl olha o rádio-relógio: 8h15. Pela luz lá fora, deve ser de manhã. Ele checa o relógio de pulso: 10h30. Encosta o relógio no ouvido e escuta. Dá duas ou três voltas de corda e o ajusta com o rádio-relógio. De acordo com o horário, todo o bloco das 8h às 8h30 diz "escove os dentes". Earl ri novamente e caminha até o banheiro.
A janela do banheiro está aberta. Enquanto sacode os braços para se aquecer, ele nota o cinzeiro no parapeito. Um cigarro está apoiado no cinzeiro, queimando continuamente e deixando um longo dedo de cinza. Ele franze a testa, apaga a bituca velha e a substitui pelo novo cigarro. A escova de dentes já está com uma pasta branca. A torneira é de apertar -uma dose de água a cada pressão. Earl empurra a escova contra a bochecha e a mexe para a frente e para trás enquanto abre o armário do espelho. As prateleiras estão plenas de embalagens de dose única de vitaminas, aspirinas, antidiuréticos. O colutório também é em dose única, uma dose de líquido azul em uma garrafa plástica lacrada. Só a pasta de dentes é de tamanho normal. Earl cospe a pasta da boca e a substitui pelo colutório. Ao guardar a escova ao lado da pasta, ele percebe um pequenino papel colocado entre a prateleira de vidro e o fundo metálico do armário. Ele cospe o fluido azul aguado na pia e pressiona o botão para enxaguá-lo. Ele fecha o armário e sorri para seu reflexo no espelho.
"Quem precisa de meia hora para escovar os dentes?" O papel foi dobrado e reduzido a um tamanho minúsculo com toda a precisão de um bilhete de amor de uma criança da sexta série. Nele está escrito: "Se você ainda pode ler isto, então você é uma porra de um covarde". Earl fita perplexo o papel e então o lê novamente. Ele o vira. Atrás está escrito: "PS: Depois de ler isto, esconda-o novamente".
Earl lê ambos os lados novamente e então dobra-o novamente e o guarda sob a pasta de dentes. Talvez então ele perceba a cicatriz. Ela começa logo abaixo da orelha, sinuosa e grossa, e desaparece abruptamente sob o seu cabelo. Earl vira a cabeça e acompanha com o canto do olho o avanço da cicatriz. Ele a segue com a ponta do dedo e então olha para baixo, para o cigarro queimando no cinzeiro. Um pensamento o domina e ele corre para fora do banheiro. Ele é pego na porta de seu quarto, uma mão sobre a maçaneta. Duas fotos estão coladas à parede ao lado da porta. O que chama primeiro a atenção de Earl é a ressonância magnética, uma moldura preta brilhante para quatro janelas no crânio de alguém. Com caneta marca-texto a figura foi intitulada "Seu Cérebro". Earl a fita. Círculos concêntricos de diferentes cores. Ele consegue distinguir os grandes globos que são seus olhos e, atrás deles, os dois lobos de seu cérebro. Rugas macias, círculos, semicírculos. Mas bem lá no meio de sua cabeça, circulado com marca-texto, se afunilando desde sua nuca como um verme em um damasco, está algo diferente. Deformado, quebrado, mas inequívoco. Uma mancha escura, no formato de uma flor, bem no meio de seu cérebro. Ele se abaixa para olhar a outra foto. É a foto de um homem segurando flores, em pé ao lado de um túmulo recente. O homem está abaixado, lendo a lápide. Por um momento isso parece uma sala de espelhos ou o começo de um desenho do infinito: um homem abaixado, olhando para o homem menor, abaixado, lendo a lápide. Earl olha a foto por um longo tempo. Talvez ele comece a chorar. Talvez ele só encare silenciosamente a foto. Por fim ele volta à cama, se joga, fecha bem os olhos, tenta dormir. O cigarro queima continuamente no banheiro. Um circuito no rádio-relógio termina de contar até dez e ele começa a tocar de novo.
Earl abre um olho depois do outro para ver uma faixa de azulejos brancos no teto, interrompida por um aviso escrito à mão colado bem sobre a sua cabeça, grande o suficiente para que ele possa lê-lo da cama.
Você não pode mais ter uma vida normal. Você precisa saber disso. Como você pode ter uma namorada, se não puder lembrar o nome dela? Também não pode ter filhos, se não quiser que eles cresçam com um pai que não os reconhece. Com certeza não pode ter um emprego. Não há muitas profissões por aí que valorizem o esquecimento. Prostituição, talvez. Política, com certeza.
Não. Sua vida acabou. Você é um homem morto. A única coisa que os médicos esperam fazer é ensiná-lo a ser menos oneroso aos enfermeiros. E provavelmente nunca o deixarão ir para casa, onde quer que isso seja.
Então a pergunta não é "ser ou não ser", porque você não é. A pergunta é se você quer fazer algo a respeito. Se vingança importa para você.
Importa para a maioria das pessoas. Por algumas semanas elas planejam, esquematizam, fazem o necessário para igualar o placar. Mas a passagem do tempo é tudo o que é necessário para erodir esse impulso inicial. Tempo é furto, não é o que dizem? E o tempo eventualmente convence a maioria de nós de que o perdão é uma virtude. Convenientemente, a covardia e o perdão parecem idênticos de uma certa distância. O tempo rouba a sua coragem.
Se o tempo e o medo não são suficientes para dissuadir as pessoas da vingança delas, então sempre há a autoridade, balançando a cabeça levemente e dizendo: "Nós entendemos, mas você é superior por deixar isso para lá. Por se erguer acima disso. Por não afundar ao nível deles". "E além disso", diz a autoridade, "se você tentar alguma coisa estúpida, nós o trancaremos em um quartinho".
Mas eles já o puseram em um quartinho, não é? Só que não trancaram de verdade nem o vigiam muito cuidadosamente, porque você é aleijado. Um cadáver. Um vegetal que provavelmente não se lembraria de comer ou de cagar se não houvesse alguém para recordá-lo. E, quanto à passagem do tempo, bem, isso não se aplica mais a você realmente, não é? Só os mesmos dez minutos, de novo e de novo. Então como você pode perdoar, se não consegue se lembrar de esquecer? Você devia ser do tipo que deixaria isso para trás, não? Antes. Mas você não é o homem que costumava ser. Nem metade. Você é uma fração. É o homem dez-minutos. É claro, a fraqueza é forte. É o impulso primário. Você provavelmente preferiria sentar em seu quartinho e chorar. Viver em sua finita coleção de memórias, polindo cada uma delas cuidadosamente. Meia vida passada, atrás do vidro e pregada em cortiça como uma coleção de insetos exóticos. Você gostaria de viver atrás desse vidro, não gostaria? Preservado em formol. Você gostaria, mas não pode, pode? Não pode por causa da última peça de sua coleção. A última coisa de que você se lembra. O rosto dele. O rosto dele e sua mulher, pedindo-lhe sua ajuda com os olhos. E talvez você possa ficar com isso quando acabar. Sua pequena coleção. Eles podem trancá-lo novamente em outro quartinho e você pode viver o resto de sua vida no passado. Mas apenas se você possuir um pedacinho de papel em sua mão que diga que você o pegou.
Você sabe que estou certo. Sabe que há um monte de trabalho a ser feito. Pode parecer impossível, mas, se todos fizermos a nossa parte, descobriremos alguma coisa. Mas você não tem muito tempo. Tem cerca de dez minutos, na verdade. Então tudo recomeça. Portanto, faça algo com o tempo que tem.
Earl abre os olhos e pisca na escuridão. O rádio-relógio está tocando. Ele diz 3h20, e o luar através da janela significa que deve ser de madrugada. Earl tateia em busca do abajur, quase derrubando-o. Uma luz incandescente preenche o quarto, pintando os móveis de metal de amarelo, as paredes de amarelo, também os lençóis. Ele se deita e olha para a faixa de azulejos amarelos no teto em cima dele, interrompida por um aviso escrito à mão colado no teto. Ele lê o aviso duas, talvez três vezes e então pisca e olha para o quarto à sua volta. É um quarto despojado. Institucional, talvez. Há uma mesa embaixo da janela. A mesa está vazia com exceção do barulhento rádio-relógio. Earl provavelmente se dá conta, nesse instante, de que está completamente vestido. Ele está até usando sapatos, sob o lençol. Ele sai da cama e vai até a mesa. Nada na sala sugere que alguém more lá ou que jamais tenha morado, exceto um ou outro pedaço de fita adesiva colado na parede aqui e ali. Nenhuma foto, nenhum livro, nada. Através da janela ele pode ver a lua cheia brilhando no gramado bem aparado. Earl bate no botão "snooze" do rádio-relógio e olha por um momento para as duas chaves presas com fita adesiva nas costas de sua mão. Ele coça a fita enquanto perscruta dentro das gavetas vazias. No bolso esquerdo do casaco ele encontra um maço de notas de US$ 100 e uma carta em um envelope lacrado. Ele averigua o restante do quarto e o banheiro. Pedaços de fita adesiva, bitucas de cigarro. Nada mais.
Earl brinca distraidamente com o calombo da cicatriz em seu pescoço e volta à cama. Deita-se e olha para o teto e para o aviso nele colado. O aviso diz: "Levante-se, saia imediatamente. Essas pessoas estão tentando matá-lo". Earl fecha os olhos. Tentaram ensiná-lo a fazer listas no primário, lembra-se? Na época em que sua agenda eram as costas da sua mão. E, se os seus compromissos saíssem no banho, bem, eles não se cumpririam. Sem objetivo, disseram. Sem disciplina. Então eles tentaram fazer com que você escrevesse tudo em um lugar mais permanente. É claro, seus professores primários molhariam as calças de rir se pudessem vê-lo agora. Porque você se tornou o produto exato das aulas de organização que eles davam. Porque você não consegue nem mijar sem consultar uma de suas listas. Eles tinham razão. Listas são a única saída dessa bagunça. Eis a verdade: as pessoas, mesmo as pessoas normais, nunca são apenas uma pessoa, com algumas características. Não é simples assim. Estamos todos à mercê do sistema límbico, nuvens de eletricidade vagando através do cérebro. Cada homem é quebrado em 24 frações de uma hora e quebrado de novo dentro dessas 24 frações. É uma pantomima diária, um homem cedendo o controle ao próximo: os bastidores lotados de medíocres clamando por sua vez sob os holofotes. Cada semana, cada dia. O homem raivoso passa o bastão ao calado, que o passa ao viciado em sexo, ao introvertido, ao conversador. Cada homem é uma multidão, uma corrente de idiotas. Essa é a tragédia da vida. Porque por alguns minutos de cada dia cada homem se torna um gênio. Momentos de lucidez, insight, como quiser chamar. As nuvens se abrem, os planetas ficam numa linhazinha organizada e tudo se torna óbvio. "Eu deveria parar de fumar", talvez, ou "veja só como eu poderia ganhar US$ 1 milhão rapidamente" ou "isso e aquilo são a chave da felicidade eterna". Essa é a miserável verdade. Por alguns instantes, os segredos do universo se abrem para nós. A vida é um truque barato de salão.
Mas então o gênio, o "savant", tem de passar os controles para o próximo cara da fila, provavelmente o cara que quer só comer batatas fritas, e insight e brilho e salvação são confiados a um imbecil ou a um hedonista ou a um narcoléptico. O único jeito de sair dessa bagunça, obviamente, é se assegurar de que você controla os idiotas em que você se torna. Pegar a sua corrente, segurá-los pela mão e os liderar. E o melhor modo de fazê-lo é com uma lista. É como uma carta que você escreve a si mesmo. Um plano geral, desenhado pelo cara que pode ver a luz, feito de passos simples o suficiente para que o resto dos idiotas compreenda. Siga os passos de um a cem. Repita o quanto for necessário. Seu problema é um pouco mais agudo, mas fundamentalmente o mesmo. É como aquela coisa de computador, a "sala chinesa". Lembra-se? Um cara está sentado em uma salinha, espalhando cartas em que estão escritas letras que ele não compreende, colocando-as uma de cada vez em uma sequência de acordo com as instruções de outra pessoa. Elas deveriam formar uma piada em chinês. O cara não fala chinês, é claro. Ele apenas segue as instruções. Há algumas diferenças em sua situação, é claro: você saiu da sala em que o puseram, então toda a empreitada tem de ser portátil. E o cara dando as instruções -ele é você, também, só que uma versão anterior de você. E a piada que você está contando, bem, ela tem um final. Só que eu não acredito que alguém vá achá-lo muito engraçado.
Portanto, essa é a idéia. Tudo o que você tem de fazer é seguir suas instruções. Como subir uma escada ou descer outra. Um passo de cada vez. Descendo pelos itens da lista. Simples. E o segredo, é claro, de qualquer lista é mantê-la em um lugar em que você terá de vê-la. Ele pode ouvir o ruído através de suas pálpebras. Ele tenta alcançar o rádio-relógio, mas não pode mexer seu braço.
Earl abre seus olhos para ver um homem grande abaixado sobre ele. O homem o olha, incomodado, e retoma seu trabalho. Earl olha em torno. Escuro demais para um consultório médico. Então a dor inunda seu cérebro, bloqueando as outras perguntas. Ele se move de novo, tentando puxar seu antebraço para longe, aquele que parece que está queimando. O braço não se move, mas o homem o olha outra vez com censura. Earl se arruma na cadeira para ver por sobre o topo da cabeça do homem. O barulho e a dor vêm ambos de um revólver na mão do homem -um revólver com uma agulha onde deveria haver um cano. A agulha está cavando a carne do lado interno do antebraço de Earl, deixando uma trilha de letras cheias atrás dela. Earl tenta se reposicionar para obter uma visão melhor, para ler as letras em seu braço, mas não consegue. Ele se deita e olha para o teto. Finalmente o tatuador desliga o barulho, limpa o antebraço de Earl com um pedaço de gaze e vai até os fundos buscar um folheto que diz como lidar com uma possível infecção. Talvez mais tarde ele conte à sua mulher sobre aquele cara e seu pequeno bilhete. Talvez sua mulher o convença a chamar a polícia. Earl olha para o braço. As letras sobem pela pele, pingando um pouco. Elas vão desde logo atrás da pulseira do relógio de Earl até a parte interna de seu cotovelo. Earl pisca para a mensagem e a lê novamente.
Ela diz, em maiúsculas cuidadosas: "Eu estuprei e matei sua mulher".
Hoje é seu aniversário, por isso lhe trouxe um presentinho. Eu teria apenas lhe comprado uma cerveja, mas quem sabe onde isso terminaria?
Então em vez disso eu trouxe um sino. Eu acho que posso ter tido que penhorar seu relógio para comprá-lo, mas para que diabos você precisava de um relógio? Você deve estar se perguntando: "Por que um sino?". Na verdade, eu acredito que você vá se perguntar isso cada vez que o encontrar em seu bolso. Há muitas dessas cartas, agora. Cartas demais para que você possa cavá-las retrospectivamente cada vez que quiser saber a resposta a uma pergunta qualquer. É uma piada, em realidade. Uma peça. Mas pense deste modo: eu não estou tanto rindo de você quanto estou rindo com você.
Gosto de pensar que, cada vez que você o tirar de seu bolso e se indagar "por que eu tenho este sino?", uma pequena parte de você, um pedacinho de seu cérebro quebrado, vai lembrar e rir, como eu estou rindo agora.
Além disso, você sabe a resposta. Era algo que você aprendeu antes. Então, se pensar a respeito, saberá. Nos velhos tempos, as pessoas eram obcecadas pelo medo de serem enterradas vivas. Lembra-se, agora? Não sendo a medicina aquilo que é hoje, não era incomum as pessoas acordarem de repente em um caixão. Então os ricos faziam com que seus caixões tivessem tubos para respiração. Pequenos tubos saindo pela lama acima para que, se alguém acordasse em um lugar onde não deveria estar, não ficasse sem oxigênio. Só que eles devem ter testado o sistema e percebido que se podia gritar até ficar rouco pelo tubo, mas ele era muito estreito para poder levar o ruído. Não era suficiente para chamar a atenção, pelo menos. Então uma cordinha passava pelo tubo até um pequeno sino preso à lápide. Se um morto voltasse à vida, tudo o que tinha que fazer era tocar o sininho até que alguém viesse e o cavasse novamente. Estou rindo agora, ao imaginar você em um ônibus ou em um fast food, colocando a mão no bolso e encontrando seu sininho e se indagando de onde ele veio, por que você o tem. Talvez você até o toque.
Feliz aniversário, amigo. Eu não lembro quem descobriu a solução de nosso problema mútuo, então não sei se devo parabenizar a você ou a mim. Uma pequena mudança no estilo de vida, admito, mas uma solução elegante, mesmo assim. Procure a resposta em você mesmo. Parece algo saído de um cartão de aniversário. Não sei quando você pensou nisso, mas eu lhe agradeço. Não que você saiba de que diabos eu falo. Mas, honestamente, foi um verdadeiro "brainstorm". Afinal, todos precisam de espelhos para que se lembrem de quem são. Você não é diferente. A vozinha mecânica faz uma pausa, depois se repete. Ela diz: "São 8h. Esta é uma chamada de cortesia". Earl abre seus olhos e põe o telefone no gancho. O telefone se apóia em uma cabeceira de madeira vagabunda que se estende por trás da cama, faz uma curva no canto e termina no minibar. A TV ainda está ligada, bolhas cor de pele sacudindo umas às outras. Earl se deita e se surpreende ao se ver, mais velho, bronzeado, o cabelo saindo da cabeça como chamas solares. O espelho no teto está rachado, a prata desaparecendo em manchas. Earl continua a se observar, perplexo com o que vê. Está completamente vestido, mas as roupas são velhas, rasgadas em alguns lugares. Earl apalpa seu pulso esquerdo em busca do relógio, mas ele não está lá. Ele pára de olhar o espelho para olhar seu braço. O pulso está descoberto e a pele mudou para um bronzeado contínuo, como se ele nunca houvesse possuído um relógio. A pele tem uma cor homogênea, com exceção da flecha preta sólida na parte de dentro de seu pulso, apontando para a manga da camisa. Ele olha para a flecha por um momento. Talvez não tente mais apagá-la, esfregando-a. Ele enrola a manga de sua camisa. A flecha aponta para uma frase escrita na parte de dentro do braço de Earl. Earl lê a frase uma, talvez duas vezes. Outra flecha aparece no começo da frase, apontando mais para cima em seu braço, desaparecendo sob a manga enrolada. Ele desabotoa a camisa. Olhando para seu peito, ele consegue ver as formas, mas não focalizá-las, então ele olha para o espelho em cima dele. A flecha segue pelo braço de Earl, cruza seu ombro, desce pela parte de cima de seu tronco, terminando em um retrato de um homem que ocupa a maior parte de seu peito. É o rosto de um homem grande, que está ficando careca, com bigode e cavanhaque. É um rosto particular, mas, como um retrato falado, tem uma certa qualidade irreal. O resto da parte de cima de seu tronco está coberto de palavras, frases, pedaços de informação e instruções, todas escritas para trás em Earl, e para a frente no espelho.
Enfim Earl se ergue, abotoa a camisa e vai até a mesa. Ele pega caneta e um pedaço de papel da gaveta, se senta e começa a escrever. Não sei onde você estará quando ler isto. Não sei nem se vai se incomodar em ler isto. Acho que não precisa. É uma vergonha, na verdade, que você e eu não nos encontraremos nunca. Mas, como diz a canção, "no momento em que você ler este bilhete, eu terei partido". Estamos tão perto, agora. É essa a sensação. Tantas peças encaixadas, organizadas. Acho que é só questão de tempo até que você o encontre. Quem sabe o que fizemos para chegar aqui? Deve ser uma história e tanto, se você ao menos pudesse lembrar algo dela. Acho que é melhor não podermos. Pensei numa coisa agora. Talvez você ache útil.
Todos esperam o fim chegar, mas e se ele já houver passado por nós? E se a piada final do Dia do Juízo for que ele já veio e já passou e não nos demos conta? O Apocalipse chega silencioso; os escolhidos são pastoreados ao paraíso e o resto de nós, aqueles que não passaram na prova, vão em frente, ignorando. Já mortos, vagando por aí, bem depois de os deuses pararem de anotar o placar, ainda otimistas com relação ao futuro. Se isso for verdade, então não importa o que você fizer. Não há esperança. Se você não puder achá-lo, então não importa, porque nada importa. E, se você o achar, então você pode matá-lo sem se preocupar com as consequências. Porque não há consequências.
É nisso que estou pensando agora, neste quarto pequeno e sujo. Fotos emolduradas de barcos na parede. Eu não sei, obviamente, mas, se tivesse que chutar, diria que estamos em algum lugar do litoral. Se você se pergunta por que seu braço esquerdo está cinco vezes mais moreno que o direito, não sei o que lhe dizer. Acho que devemos ter dirigido um bocado. E, não, eu não sei o que aconteceu com o seu relógio. E todas essas chaves: não tenho idéia. Não há uma sequer que eu reconheça. Chaves de carros e chaves de casas e chavezinhas de cadeados. O que nós estivemos fazendo? Eu me pergunto se ele vai se sentir idiota quando o encontrarmos. Perseguido pelo homem dez-minutos. Assassinado por um vegetal. Eu me irei em um minuto. Vou baixar a caneta, fechar meus olhos, e você poderá ler isto, se quiser. Só queria que soubesse que estou orgulhoso de você. Não sobrou ninguém importante para dizê-lo. Ninguém que sobrou vai querer dizê-lo. Os olhos de Earl estão escancarados observando pela janela do carro. Olhos sorridentes. Sorrindo através da janela para a multidão que se aglomera do outro lado da rua. A multidão se aglomerando em volta do corpo na passagem. O corpo esvaziando lentamente pela calçada e bueiro adentro. Um cara atarracado, rosto para baixo, olhos abertos. Ficando careca, com cavanhaque. Na morte, assim como em retratos falados, os rostos se parecem. Esse é com certeza alguém em particular. Mas poderia, mesmo, ser qualquer um. Earl ainda sorri para o corpo enquanto o carro se afasta do meio-fio. O carro? Quem pode dizer? Talvez seja uma viatura da polícia. Talvez seja só um táxi. Enquanto o carro é engolido pelo tráfego, os olhos de Earl continuam a brilhar na noite, observando o corpo até que ele desapareça em um círculo de transeuntes preocupados. Ele ri para si mesmo enquanto o carro continua aumentando a distância entre ele e a multidão crescente. O sorriso de Earl diminui um pouco. Algo lhe ocorreu. Começa a apalpar os bolsos; primeiro, serenamente, um homem procurando por suas chaves, depois um pouco mais desesperado. Talvez o seu progresso esteja impedido por um par de algemas. Ele começa a esvaziar o conteúdo de seus bolsos no assento a seu lado. Algum dinheiro. Um monte de chaves. Pedaços de papel. Um pedaço redondo de metal rola de seu bolso e desliza pelo assento de vinil. Earl está frenético, agora. Ele bate na divisória de plástico entre ele e o motorista, implorando ao homem por uma caneta. Talvez o taxista não saiba muito bem inglês. Talvez o policial não tenha o costume de falar com suspeitos. De qualquer modo, a divisória entre o homem da frente e o homem de trás continua fechada. Uma caneta não virá.
O carro passa por um buraco, e Earl pisca e vê seu reflexo no espelho retrovisor. Ele está calmo, agora. O motorista faz outra curva, e o pedaço de metal escorrega de volta para se apoiar contra a perna de Earl com uma pequena badalada. Ele o pega e o olha, curioso. É um sininho. Um sininho de metal. Inscritos nele estão o seu nome e algumas datas. Ele reconhece a primeira, o ano em que nasceu. Mas a segunda não significa nada. Nada mesmo.
Ao girar o sino em suas mãos, ele percebe o espaço vazio onde costumava ficar seu relógio. Há ali uma pequena flecha, apontando para seu braço. Earl olha para a flecha e então começa a desenrolar sua manga.
"Você chegaria atrasado a seu próprio funeral", ela dizia. Lembra-se? Quanto mais eu penso a respeito, mais me parece banal. Que tipo de idiota, afinal, está com pressa de chegar ao final da própria história? E como eu saberia se estou atrasado, afinal? Eu não tenho mais um relógio. Não sei o que fizemos com ele.
E para que diabos se precisa de um relógio, afinal? Era uma antiguidade. Um peso morto agarrado ao seu pulso. Símbolo do velho você. Aquele você que acreditava no tempo. Não. Apague isso. Não é tanto que você tenha perdido sua fé no tempo, é mais o tempo que perdeu a fé em você. E quem precisa dele, afinal? Quem quer ser um desses tolos que vivem na segurança do futuro, na segurança do instante após o instante em que eles sentiram algo forte? Vivendo no próximo instante, no qual eles não sentem nada. Rastejando pelos ponteiros do relógio, longe das pessoas que lhes fizeram coisas indizíveis. Acreditando na mentira de que o tempo curará todas as feridas -que é apenas um jeito simpático de dizer que o tempo nos mata.
Mas você é diferente. Você é mais perfeito. O tempo são três coisas para a maioria das pessoas, mas para você, para nós, é apenas uma. Uma singularidade. Um instante. Este instante. Como se você estivesse no centro do relógio, no eixo sobre o qual giram os ponteiros. O tempo segue à sua volta, mas nunca segue em você. Ele perdeu sua habilidade de afetar você. O que é que dizem? Que tempo é furto? Mas não para você. Feche os olhos e você pode começar tudo de novo. Evocar a emoção necessária, fresca como as rosas.
Tempo é um absurdo. Uma abstração. A única coisa que importa é este momento. Este momento 1 milhão de vezes. Você precisa confiar em mim. Se este momento se repetir suficientemente, se você continuar tentando -e você precisa continuar tentando-, por fim você chegará ao próximo item de sua lista.
Tradução de Victor Aiello Tsu.