segunda-feira, 12 de agosto de 2019



O crime. 
Sim, aquilo de que nunca tínhamos tomado parte e que era do cotidiano dos não-brancos, não-ricos, não-cristãos e não-criados-em- condomínio-apartamento-ou-casa-com-pátio-e-garagem.
Era a fronteira que não ousáramos atravessar, apesar de toda nossa coragem movida a raiva e desconforto. 
O crime era nossa antítese, o ato inaugural, que nos igualava, que nos aproximava demasiadamente deles
Por que uma coisa era vociferar contra a sociedade, ou o que conhecíamos dela, fumar maconha, usar roupas sujas e ficar dois dias sem voltar pra casa, outra, muito diferente, era dar conta de nossas próprias necessidades sem pedir que ninguém nos ajudasse, e, mesmo pedindo, não sermos atendidos. 
Uma coisa era chocar a família unida na noite de natal, negando a taça pra brindar e o peru pra comer. 
Uma coisa era épater les bourgeois, outra era chocar a nós mesmos. Queríamos mesmo pisar naquele outro mundo, viver um momento de precariedade absoluta? 
Eis a pergunta que vale um milhão de inconsequências.



- Vamos ser felizes? Por que não?  Aqui e agora, porque não? Não cometemos nenhum crime hediondo, nem perdemos todo o tempo disponível. Por que não?

- E porque não podemos ser tristes?

- Por que sabemos de cor como é a tristeza, não sabemos? Não temos motivos suficientes pra aceitarmos que é só isso que temos pra saber. Vamos ser felizes.

- Não quero ser feliz, estou bem assim.

- Você não quer ser feliz porque é prático, porque é fácil, porque...

- A tristeza não dói.

- E ser feliz, você sabe se é suportável? Não estou falando de felicidade burguesa, mas de ser feliz porque sim, porque é alguma coisa que não sabemos.

- Para sempre?

- Sem ironia. Você sabe que isso não é uma opção. Para sempre é um clichê.

- Se perdemos desde que nascemos. O que não existe é ganhar tempo. Ganhar tempo é fingir que não sentimos a constância da derrota....

- Que derrota? Você já foi à guerra? Já lutou por algo a ponto de matar alguém? Não há derrota pra nós, porque não precisamos vencer. E se não precisamos ser felizes, também não precisamos da tristeza pra confirmar a morte. Aliás, a morte é, simplesmente é, com ou sem a gente.


terça-feira, 16 de abril de 2019




uma espera azeda pelo fim ou qualquer outra coisa, alívio, alegria ou choque que seja, tudo menos esse rio de água parada sem margem nem beira nem sombra de vida.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019



cobrei demais, exigi demais, fui carente demais, possessivo demais, sensível demais comigo e de menos com você. Sofri demais, apanhei demais, me machuquei, tudo sozinho. Um espetáculo patético e triste de autonomia. Você tava perto demais quando o dique se rompeu, o veneno transbordou, molhou a terra e intoxicou o ar. As raízes fincadas na ansiedade e na angústia onde me plantaram são o húmus e daí não me movo. Não consigo. Nunca baixei a guarda, sempre estive em pânico, mas nunca houve ataque a não ser o meu, desgovernado, exagerado, impreciso, incompreensível defesa contra você, que eu desconheci, como um cego às avessas.      

sábado, 9 de fevereiro de 2019




Hoje quero estar em todos os meus dias. Ensolará-los e chovê-los e viver com eles o tempo que tenham. Quero envelhecer com meus dias. E ocaso, se for o caso. 

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Canción de la muervida



Mi mano derecha es una golondrina
Mi mano izquierda es un ciprés
Mi cabeza por delante es un señor vivo
Y por detrás es un señor muerto

Los muertos han perdido toda confianza
En los cimientos de nuestras casa y de nuestras lenguas
Y aun de nuestros relojes enrollados en el infinito
Qué podemos decirles

Ellos suben sobre el tejido de la eternidad
Y miran a lo lejos
Atan sólidamente las nubes que están llenas
Tocan la campana del vacío que debe saludar a los siglos
Como un sombrero
Llevan un anillo en cada uno de los cinco sentidos
Y un pájaro en cada cielo
Están desterrados de la tierra y encielados en el cielo
Ellos mondan la corteza de los siglos

Los vivos alargan su ciprés
Para decir buenos días a la golondrina
Se alejan sonrientes hasta el horizontes
Suben cantando hasta el piso de la muerte
Hablan con una lengua adormecida desde mucho tiempo
Son póstumos como los ecos de la flor del trueno
Y lo mismo que los perfumes

Llevan su cuerpo como el tallo de un nenúfar precioso
Y no van más lejos que un tiro de pistola
Cuentan los días con huesos de frutas
Que guardan en jaulas como pájaros
Cuentan las estrellas y les dan nombres amistosos y tibios
Es preciso no confundir los lechos y no equivocarse de plato
Es preciso cantar como un nenúfar precioso

Un pájaro trina para mil orejas anónimas
una estrella brilla para mil ojos recién nacidos
El pájaro cambia de día con una mirada
La estrella deposita la muerte y sigue su camino.




Vicente Huidobro

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019


Hoje fui ao cinema sem você. Foi como ter outra vez treze anos. Com essa idade comecei a ir sozinho ao cinema. Um ritual: conferia os títulos e os horários, ligava para o cinema para confirmar, que na cidade onde eu morava nem sempre o jornal tinha razão, recortava a pequena reprodução em preto e branco do cartaz do filme que queria assistir e guardava numa gaveta. A minha gaveta, com chave. Nessa época as salas exibiam filmes, e isso as justificava. Na minha adolescência, na cidade onde eu morava, já não haviam mais shows ou teatro na sala de cinema. Na cidade onde eu vivia não tinha pipoca nem refrigerante pra vender na sala de cinema. Quem ia queria ver um filme, exclusivamente isso. Não tinha um shopping como pretexto. E nem todo mundo ia. A maioria esperava o fim de semana, porque ir ao cinema podia ser um programa de família ou, às vezes, a única intimidade possível para um casal. Se eu fosse um frequentador de fim de semana, nunca iria sem você. Todas as idas ao cinema eram especiais, e ia três, quatro vezes por semana. Gostava de brincar sozinho, e aos 13 minha brincadeira predileta era ir o cinema. Uma brincadeira séria, um prazer quase secreto. Por que na sala de cinema, dependendo do dia, tinham só mais duas ou três pessoas, anônimas. Nós que vamos sempre ao cinema não gostamos de sentar próximos uns dos outros ou de nos conhecermos. Os minutos antes são de preparação, esvaziamento, meditação. E a proximidade atrapalha a imersão. Tentamos ser invisíveis, pra podermos ser outra coisa. A imersão é a possibilidade de duas a três horas sendo outro, sendo outra, em outro lugar, em outra vida. Fui ao cinema sem você hoje. E isso também tornou possível o modesto prazer do excedente, de sair depois dos créditos e seguir sendo outro, sendo outra, durante algum tempo, no cenário da vida de todos os dias. Algumas vezes tivemos juntos esse prazer do excedente (ou você só respeitava o meu silêncio?), mas sempre existe o risco de eu ou você sentirmos a necessidade de dizer alguma coisa na saída. E as palavras espantam o personagem e afugentam o excedente. Fui ao cinema hoje sem você. Foi como ter treze anos de novo. E ter de novo quatorze, e quinze, e visitar cada um e todos os anos da minha vida, porque nunca deixei de ir ao cinema. E hoje eu fui sem você, como tantas vezes antes, como tantas vezes depois. Hoje só tive eu e duas ou três solidões sentadas uma distante da outra na sala de cinema. E lá, assistindo os  trailers, tive certeza que continuarei levando a minha solidão e colocando sentada na poltrona enquanto estiver vivo. E enquanto houverem cinemas sem shopping, sem refrigerante e sem pipoca. Irei sozinho, irei com outros, com outras, especialmente quando te encontrar no amor sem você. Depois dos créditos finais desse longo espaço entre nós, entre os nossos personagens. Depois desse tempo de excedente indesejado que as palavras não conseguem afastar.